terça-feira, 28 de setembro de 2010

'Saat' no Alvor.

Se fosse a comparar este conhecer territorial com o conhecer pessoal, notaria que, desta vez, o ritual iria soar um pouco contraditório.
No procedimento normal, seria eu a procurar conhecer a terra, as gentes, as cores.
No procedimento costumeiro, seria a Carolina a procurar os lugares, a tentar escutar as músicas da calçada e a deixar que os cheiros desempenhassem o lugar do sal que tem encrostado no corpo.
Desta vez, bastou parar por um bocadinho, olhar em volta, e as músicas entraram-lhe pelos ouvidos sem bater à porta, os aromas colaram-se e envolveram-se como lapas nos corais, como wax nas pranchas.
Em cima, um céu resplandecente, quente e carregado de nuvens, todas elas bem ordenadas.
Se fosse uma criança, acreditava que tinham combinado e preparado aquele espectáculo para mim.
Do meu lado esquerdo, um senhor de idade já respeitada – mas não velha –, a tocar acordeão, sentado numa pequena cadeira verde.
A musica, mesmo não sabendo avaliar, estava a soar-me bem e a fazer-me sentir aquela satisfação (talvez ilusória) que sobe dos pés ao coração quando me encontro num novo lugar, quando tenho a certeza de que, naquele preciso segundo, estou exactamente onde deveria estar. Nem mais um passo.
Na direita, um pescador a limpar e apreciar a sua última medalha.
Pegava com todo o cuidado, com toda a calma, cada peixe. Tirava os anzóis um a um.
Na verdade, ele tinha todo o tempo do mundo, todo o seu tempo para si mesmo.
Hoje em dia, muitas vezes não temos o nosso tempo.
É-nos roubado por toda a evolução ‘anti-natura’ da sociedade que pisou a lua.
Ao lado, um cão, com pêlo negro aos caracóis, deitado.
Do qual mais tarde vim a apurar o nome, Choco Preto.
As casas eram decoradas com pássaros azuis, fazendo contraste com as linhas vermelhas no rebordo das portas e janelas.
Existem várias formas de se viver o mar, existem várias espécies de aventureiros das ondas: os surfistas, os marinheiros, os pescadores…
E, apesar de cada um o amar à sua maneira, existe um ponto a que eu gosto de chamar “saat” (‘momento’ em Indonésio), em que todos sentem o mar da mesma forma, ou pelo menos, partilham a mesma essência.
Ali, ainda parada no meio daquele panorama, enquanto a vida dos ‘locals’ continuava de forma trivial, estava a sentir – não na totalidade, mas pelo menos em parte – o surf.
Estava presente.
A calma do pescador a escolher o melhor dos seus troféus, a musica do acordeão, os pássaros, o quente… estava ali, a serenidade da espera pela onda perfeita, a melodia das ondas e da rebentação, as gaivotas que são muitas vezes a nossa companhia (no lugar do Choco Preto), o calor de Verão, o frio no Inverno, o sal… e o céu, que muda de feição em cada surfada.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

S.O.S, Salvem Os Sorrisos.

Há dias em que o surf nos transporta para emoções fora do alcance de si mesmo.
Há dias em que aprendemos mais do que queríamos, ou esperávamos aprender.
Há dias em que nos levantamos sem um motivo perceptível para o fazermos.
Há dias em que nos falha a bafagem.
Precisava de um pretexto para escrever. Não me apetecia usar os que tinha.
Peniche. O relógio marcava as 8:24 da manhã da última vez que olhei para ele antes de me sentar na areia a contemplar o mar.
Não sei se é só comigo ou se este fenómeno acontece com mais membros da comunidade surfista, mas preciso sempre de pelo menos uns 5 minutinhos a prezar o Deus Mar, a areia e, se existirem, as pessoas que me rodeiam.
Desta vez demorei mais tempo. Reparei, desde que meti o pé na areia, num senhor negro sentado em cima de um tronco.
Também eu sentada, encostei-me para trás e fechei por um instante os olhos de modo a ouvir melhor o toque das ondas e sentir com mais pujança o vento que teimava por marcar a sua figura.
Não demorou muito até notar que alguém se tinha arrumado ao meu lado.
Sem quase dar tempo para eu abrir os olhos comecei a ouvir uma voz robusta:
- Eu tive um amigo. Ter um amigo é raro! Chamava-se Elias.
Nasci em África e foi lá que cresci. Eu e o Elias estávamos sempre juntos e costumávamos correr à beira dos rios, pescar e construir abrigos onde passávamos noites a admirar os sons e o vento, tal como estavas a fazer agora – murmurava o mesmo senhor negro que olhara para mim quando cheguei –.
Um dia soube-se que tinha febre hemorrágica ebola, uma doença infecciosa grave, muito rara, frequentemente fatal, causada pelo vírus ebola.
E ao contrário do que se mostra nos filmes, é apenas moderadamente contagiosa. No entanto, como no lugar onde habitava os recursos não eram muitos, ele teria de ser isolado.
Eu sabia que muito provavelmente nunca mais o iria ver e no dia da despedida supliquei à minha mãe para o ir ver uma última vez. Ela bateu-me e vozeou comigo.
Mas eu fui na mesma e regressei a casa alagado em lágrimas.
Então, a minha mãe perguntou-me “Era para isto que querias ir? Valeu a pena?”.
E sabes, valeu mesmo a pena! Quando cheguei e vi-o entrar, sabendo que nunca mais o iria ver… ele olhou-me, sorriu e disse “Eu sabia que vinhas”.
Valeu por tudo. Valeu por todos os obrigados, por todas as lágrimas me estavam a cair, por todos os abraços. Valeu, de certeza, o teu surf.
Também eu lhe sorri e continuo a sorrir. Um sorriso pode ser uma vida.
Eu fiquei calada, ele ficou calado. Afinal não se trata apenas de liberdade, é também um pouco de lisura.
Não sei se a historia era verdadeira ou não, mas pouco me atinge.
Ganhei o dia, já tinha sobre o que escrever!
Agradeci-lhe.
Agarrei na prancha, sorri, e fui surfar.