quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Criolo.

O que somos nós afinal, se não um pouco do que os nossos são?
A vida faz questão de nos recordar de vez em quando que não estamos sós.
Não tenho muito tempo, mas tenho-o. Calma.
Se fizermos um pequeno esforço ou tentarmos encontrar um pouco de tempo mesmo quando o tempo já é pouco, conseguimos listar uma multidão de situações em que alguém, seja por obra da casualidade ou não, nos lembra de que sozinhos e apagados dos outros, não passamos de vultos, servos da confraria.
Neste primeiro dos cinco dias, não me apetece falar do surf na Cortegaça, das ondas da Torreira ou do vento de Espinho. Valeu-me a viagem de autocarro. Valeu-me ninguém.
Com ou sem alguém, estava sentada junto à janela, de pernas e cabeça dobradas sobre o bloco em que agora pouso o lápis.
Deixava que o sol me enroupasse a cara, que as árvores andassem para trás e os traços brancos do chão fossem engolidos enquanto tentava decifrar o que é que passeava na minha cabeça nesse urgente instante.
Não estava fácil. Fosse o que fosse, devia estar escondido, prudente e… sozinho. Tal como eu, tal como nós.
Nisto, numa das várias vezes em que o autocarro quebrou o seu ritmo de acelerar e o meu de meditar, reparei num grupo minimamente gigante de crianças azuis.
Devia de ser mais uma daquelas colónias de férias para entreter a miudagem.
Dois deles, de ar amável e enfadonho, olharam para mim e apontaram para onde estava a escrever.
São impressionantes as conclusões imprescindíveis à vida que aspiramos em micro segundos.
Ele vivia numa casa longe do mundo, ele não se sentia só. Não estava.
Mesmo eu, nesta minha tentativa falhada de me afastar de todos, de me deparar apenas comigo, mesmo eu neste meu pequeno egoísmo, escrevo neste momento sobre outros.
Estou aqui por causa dos outros. Por causa das coisas.
Escrevo, vou surfar, ando, sorrio e choro porque existem sempre outros. Existe sempre alguém. Ninguém é intocável, por mais que se faça.
Até neste autocarro, poderia dirigir-me a qualquer um. Todos têm uma história, todos têm alguma coisa a dizer se me apetecer falar. Todos me podem fazer rir.
Alguém, cá dentro ou lá fora, talvez me dê um ombro se me apetecer chorar.
Mesmo quando seguro na prancha e vou para dentro de água a considerar que estou, finalmente, sozinha… até ai, interiormente, faço um ‘zoom inverso’ como se estivesse a olhar do céu para mim mesma.
Vejo-me sentada no meio da água, segue-se a areia, as dunas, as estradas, as casas das pessoas, mais ruas, mais estradas, mais praias, mais e mais pessoas, que comem, dormem, saltam, riem, cantam… surfam…
Estou realmente longe… mas não estou sozinha.
Quando o vento me assopra a cara consigo ouvir as crianças a cantarem na Índia, um mendigo em Israel, o violino na Argentina, um grupo de amigos a tocar viola em Itália, os camelos e as feiras em Marrocos, as mulheres a esfregarem a roupa em África, as luzes do Japão, o wax a raspar numa prancha na Austrália (e acho que deve ser o Bruno, um amigo meu que foi para lá viver com a namorada alemã).
Poderia ouvir mais se assim quisesse. No entanto, estou ali, a fazer o mesmo que tento fazer agora. Dessa vez não alcancei, desta não alcanço e na próxima não alcançarei.
Não consigo acreditar que eu seja insensata por pensar desta forma, quando são os outros que não contemplam em seu redor e apenas dão valor às suas pessoas, aos que pensam como eles, inaptos de seguir as pegadas de um estranho.
O que é que importa a cor da pele de alguém?
Somos todos iguais. Estamos todos ligados.
Juro-vos que estou a respirar e estou acordada, garanto-vos isso.
Bem sei que para muitos, estas palavras não passam de um sonho.
Mas existe quem as torne reais, em todos os cantos do mundo existem esses… que não estão sozinhos.
Muitas vezes concordamos com o que temos de concordar e pensamos que temos sempre de ter mais do que precisamos.
Só que, mais uma vez e como sempre… o ritmo acelera. Uma musica.
A bateria começa a bater mais rápido, marca o ritmo, e por sermos as pessoas do mundo… não podemos parar para pensar nesses pormenores, não é assim?
Não serão estes os mais importantes?
Não são estes que dão valor e significado à vida?
Não serão estas pequenas realidades que fazem com que esta passagem pelo Planeta Azul seja mais do que apenas isso?
Bom… agora não tenho tempo. Mas devia. Devíamos! Porque o tempo é agora.
Ainda no autocarro, escrevi numa folha em grande: “Bom dia!”. Mostrei-lhes pela janela e tentei soletrar o que tinha escrito.
Entenderam-me. Reacção em cadeia!
Em menos de um minuto a viatura voltou acelerar, as árvores a andar para trás, os traços brancos do chão a serem engolidos.
Quando olhei, vi todo aquele tropel a acenar-me. Pelos movimentos dos lábios, compreendi que também estavam a dizer “Bom dia!”, mas num tom mais continuado.
Neste dia não estava à espera de receber os ‘bons dias’ de ninguém.
Hoje quis, e quero, agradecer a todos pelo simples facto de existirem. A todos!
“Vivemos tão ligados uns aos outros, neste arco, neste ciclo sem fim.”
Obrigado.