sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Come as you are, as a friend...

As surfadas com vista para a ponte do Tejo sempre foram muito diferentes das dos outros dias, sempre foram melhores!
As surfadas à noite, contigo, sempre foram uma viagem muito maior.
Sempre aprendi muito mais, sempre sai mais cansada, sempre sai mais culta. Sempre. Até ao dia.
A escolha era, ou foi, minha. Inteiramente minha. A escolha foi feita sem o teu consentimento.
Mas neste momento, estou aqui, sem nada mais por dizer, só eu. Como sempre fui. Pura, de caneta e lápis na mão, outra vez.
Sem duvidas do que quero, do que era certo e do que será certo.
Esfrego a caneta para que a tinta não me falhe quando, daqui a breves minutos, estiver de lágrimas a arrefecerem-me o vulto e travão no coração.
Fui para a praia cedo contigo, deitadas na areia de barriga para baixo, falei-te do que fui, do que sou, do que quisera ser. Gostava de estar ali.
Naquele momento, por mais que fossem as propostas, não preferia estar em qualquer outro lugar, nem a ouvir qualquer outra voz.
Contaste-me a história da tua vida. Eu contei-te a história da minha vida.
Pediste para te contar mais, eu contei. Eu pedi. Tu contaste. Lembranças.
- Descansa.
Dizias-me tu, muito mais cansada que eu.
Um dia. Dois dias. Três dias. Quatro dias. Como diria o Diogo “Quererias que notassem?”, ninguém notou nada. Somos só duas. Ninguém se importa com o que fazemos ou não, salvo os outros que se juntam connosco, mas também lá se vão juntando com os deles, os outros dos outros que já não são nossos, e por assim adiante…
O segredo para se ser feliz está em procurar-se vários breves momentos de felicidade, disse-me ele. Procurei-te. Não te encontrei. Julguei que nunca mais te iria encontrar.
O que é que nos aconteceu outra vez? Quem foi que errou desta vez? Isso não me importava muito. Uma vez uma, outra vez outra.
As pessoas crescem, as pessoas melhoram, as pessoas mudam. Mas os sentimentos não cambiam. Ou melhor, diversificam, mas os grandes, são quase como inevitáveis. Assim como tu.
O que me importava é que estava sentada na praia, com vista para a ponte do Tejo, à mesma hora que costumava estar contigo… mas sem ti.
Sem ninguém para me fazer perguntas, para me meter a mão por cima do ombro. Sem ninguém para me apontar.
Como antigamente, tinha outras propostas, todos nós temos sempre, pelo menos, uma segunda escolha. Mas, como outrora, eu queria estar ali contigo, mesmo que não estivesses tu comigo.
Será que estavas bem? Será que também te lembras do que aprendemos uma com a outra quando, em princípio, não teríamos nada para ensinar?
“Come as you are, as you were, As I want you to be, as a friend, As a friend, as an old enemy.”
Quero que venhas, neste momento, tal como és, como uma Amiga. Sinto saudades tuas.
Quero que me voltes a contar tudo de novo, quero que me digas como estás, quero que me lembres de uma canção. Esqueci-me neste momento.
E afinal de contas… ninguém vai notar nada. Ninguém vai notar a tua falta, nem a minha, nem a nossa.
“Take your time, hurry up, Choice is yours, don't be late, Take a rest, as a friend”.
Demora o teu tempo. Eu estou a pensar ficar por aqui. A escolha é tua. Eu já apurei.
“As I want you to be.”
Mas não venhas alterada. Quero que venhas tu e não outra pessoa qualquer.
Não convides outro ‘eu’ para encarar o teu. Se assim for, anteponho que não venhas.
“And I swear that I don't have a gun, No I don't have a gun, no I don't have a gun.”
Desta vez não estou armada. Deixei a armadura para lá da memória. Podes atacar que eu não me vou defender, podes tirar sem repor.
Não pode ser normal, mas obrigada!
Gosto de te ter de volta. Gosto de surfar contigo. Gosto de ser. Gosto de estar.
Gosto de ti. Gosto do Mar.

sábado, 2 de outubro de 2010

Professor Lotschenpass.

Já faz algum tempo que estava para escrever este texto.
Tinha e tenho, uma vontade gigantesca de o ver escrito.
Queria ver as letras pousarem no papel enquanto a água se arrumava nos meus olhos quando relembro algumas passagens, algumas imagens.
Não o escrevi mais cedo porque tinha medo de não conseguir, de caneta na mão, produzir algo tão astronómico quanto esta viagem.
Tenho medo de que, quem vá ler, não consiga sentir o pulsar do coração um pouco mais forte ou uma vontade indubitável de… alcançar.
Depois, hoje e agora, percebi que é impossível conseguir que quem leia, veja exactamente as mesmas imagens que eu, sinta o que eu senti.
Apesar de considerar que é quase obrigatório acompanhar estas letras (principalmente estas) com algumas fotografias, é quimérico que consiga transmitir o sol na pele, o ar nos pulmões, a terra dentro das botas, o cansaço, o gosto…
Mas está tudo no sítio, espero eu, para quem quiser visitar!
Se vos disser que neste momento tenho uma explosão de sentimentos dentro de mim, acreditariam? Sinto-os misturarem-se, confundirem-se, e competirem para se fazerem ver.
O arrepio do vento, o brilho no olhar ao contemplar a cativante vegetação, o toque do ar, do gelo, da neve, da rocha…
A Natureza tal como ela é. A Natureza sem interposição do homem.
É um pouco irónico que o homem ainda procure estes espaços e se submeta a certas situações para os viver.
Mas existem homens e Homens, é um facto.
Antes de partir, de mochila incorporada, não sabia bem o que me esperava.
Estava feliz, mas não conseguia estar ansiosa.
Agora posso dizer-vos, com toda a minha verdade, que eu não sabia mesmo o que me aguardava.
O dia começou bem cedo (6h30).
O hike até ao abrigo de Lotschenpass, a 2700m de altitude, era o esboço já à muito sonhado por mim e pelo meu grupo.
Digo “esboço” porque acho indecente chamar às expectativas que tínhamos em mente, o projecto da viagem que nos esperou.
Esta extravagância, porque a jornada superou muito as nossas expectações.
Tornou o sonho num esboço para a realidade utópica que tivemos oportunidade de viver.
Passo a passo, com muita conversa e cantares pelo trilho, fomos subindo e tentando aproveitar tudo o que a vida, de vivo, nos estava a oferecer.
Adoraria descrever-vos cada gota dos riachos que fomos encontrando pelo caminho.
Adoraria que os textos tivessem aroma, que as letras se movessem e desenhassem cada particularidade a que fui tomando atenção.
Adoraria também, que as virgulas e os sinais de pontuação se tornassem notas de uma melodia e que tocassem harmoniosamente para quem ler esta recordação.
Como se de um maravilha privada se tratasse.
No fundo, foi um pouco isso que aconteceu com todos nós. Ninguém viveu a mesma viagem que eu.
Cada um levantou a sua tela, escolheu as tintas e os instrumentos, montou um palco com o cenário que bem entendeu e deixou que isso tomasse o comando da sua vida por 48 horas.
Cada um tem a sua forma de caminhar, o seu ritmo.
Ora, agora tentem acompanhar o meu…
Em cada 10 metros via uma queda de água nas montanhas. Ali, é o paraíso dos pássaros e de qualquer outro ser que viva em liberdade.
Cada centímetro era pensado, desenhado, apagado e pintado de novo para ficar perfeito.
Muita vegetação, erva no solo, cascatas, e neve ao fundo – servindo sempre de meta e corpo de comparação – recheavam a paisagem dos que pé ante pé, com mais ou menos dores, agiam para o mesmo.
Nesta viagem vinham-me muitas músicas à cabeça, daquelas que começam devagar e vão cada vez encaixando mais instrumentos: as folhas amarelas, laranjas, a madeira castanha, branco, o lilás das flores, amarelo…os caminhos construíam-se por onde não havia caminho.
Ali, nenhum lugar parecia perto. Ali, a beleza nunca nos alvorava.
Era tempo de me refugiar com a minha própria energia. Sentia-me em casa.
Por engano, vimo-nos obrigados a trespassar um rio para a outra margem, o que, na altura não representou (pelo menos para mim) grande problema.
Todos estavam a aceitar e encarar o que nos ia aparecendo com naturalidade.
Então, quatro de nós voluntariaram-se para segurar em varas e ajudar o resto do grupo a passar.
O grupo, devagarinho, foi pondo os pés nas pedras, agarrando-se uns aos outros e lá conseguiram. Primeiro as mochilas, depois o resto.
Todos eles estavam completamente apagados do resto do mundo naquele momento, conseguia notar isso nos risos, nas expressões.
Todos, incluindo eu, estávamos a viver apenas aquele momento.
Apesar de parecer egoísta, acho que ninguém se lembrou da família, dos problemas na cidade natal, dos compromissos, nem sequer tinha pensado bem nas pessoas com que estava, se eram os melhores amigos, se não eram… nada importava a não ser o “agora”.
No meio do nada, sabíamos para onde ir. E, no meio do nada, a vegetação começava a desaparecer enquanto a rocha tomava domínio do nosso caminho.
Engraçadas as relações que fui sentido com alguns animais (dos mais pequenos aos maiores) que se cruzavam comigo no caminho.
Eles pareciam saber exactamente para onde iam, pareciam conhecer todo aquele mundo de trás para a frente e de frente para trás, pareciam não me estranhar como visitante.
E as coisas iam acontecendo no resto do cosmos, enquanto nos estávamos ali, no meio da ninharia, no centro de tudo. Era tempo de rever.
No caminho pelas rochas, já se ouviam alguns respirares mais esbaforidos, já se notava uma certa ansiedade em chegar.
Eram estranhas, para mim, as diferenças no estado de humor das pessoas: tanto estavam ansiosas por chegar, tanto estavam tristes por estarmos cada vez mais perto e não queriam sair da viagem, tanto queriam correr, tanto queriam parar, tanto falavam como estavam caladas.
Era notório o espírito de equipa, a amizade (ou necessidade, como entenderem…)!
Ninguém julgava ninguém por estar mais para trás.
E, apesar de o grupo se ter afastado um bocadinho entre vários ‘subgrupos’, continuavam todos ligados, continuava a existir uma preocupação mútua.
Por vontade própria, decidi ficar mais para o fim.
Primeiro, porque não me sentia cansada e o facto de ir à frente ia dar-me vontade de andar ao meu ritmo, dessa forma perdia um bocadinho o contacto com as pessoas.
Segundo, porque adorava parar quando queria (e voltar para trás, muitas vezes), só para ver mais uma vez aquela paisagem, para ter o prazer de tocar com calma, para ter tempo de sentir.
O grupo que estava comigo foi apanhado por um nevoeiro muito intenso e rapidamente adoptamos uma técnica muito eficaz.
Passo a tentar explicar: cada um gritava o seu nome se não via ninguém, e então, ninguém se mexia (porque o da frente era sempre o guia do de trás).
Quando já conseguia ver, comunicava, e todos avançavam mais um pouco.
Em último, estava uma amiga aleijada de um pé e essa era a nossa maior preocupação, não era o facto de demorarmos mais ou menos tempo, de perdermos o ‘batalhão’.
Finalmente… o glaciar!
Encontrámos muito pouco gelo na geleira (muito pouco, para um glaciar, está claro).
E ai, acho que todos, no seu interior, pensaram nos papéis que deitaram no chão, na poluição dos seus carros, das queimadas, das fábricas…
Como depois de tanta subsistência, estávamos perante um local tão apagado.
Eu lembrei-me dos ursos que vêm as suas casas cada vez mais pequenas, e matutei como seria se cada vez que o homem fosse trabalhar, chegasse a casa e esta estivesse um pouco mais pequena… chegando ao dia em que não conseguiria caber pela porta e morreria à fome na rua.
Notavam-se os rasgos nas paredes antes geladas, notava-se a existência de algo passado mas não conseguia produzir a imagem de como era.
Todos os senhores que se sentam confortáveis nas suas cadeiras almofadadas, e imaginam projectos gigantescos, sem pensar nas consequências, deveriam ir ali, pelo menos uma vez na vida.
Alias, toda a gente devia ter a possibilidade de passar o que passei durante toda a andança daqueles dois dias.
Olhava para os efeitos naquele curto espaço e calculava, como será o resultado de toda esta despreocupação, no seu todo.
Adorei sentir o molhado da neve nas minhas mãos.
No fim de uma parte do glaciar, ao invés de olhar para a frente e ver o meu caminho, tinha de começar a pesquisar para cima se o queria antever.
Começava a tornar-se quase como uma escalada e não uma caminhada. Agora, cada passo era ainda mais pensado.
Já estávamos à altura de muitas nuvens, já as víamos mesmo à nossa frente, já estávamos mais perto, com certeza!
As imagens falavam por si, todos sabíamos que todos estavam a honrar o mesmo.
Muitos ‘reis do mundo’ nunca sentiram o que nós sentimos, nunca viram o que nós vimos. O dinheiro não traz felicidade. Pode ajudar, claro. Seria impossível estarmos ali sem ele.
Mas quando falo de ‘dinheiro’, neste caso, estou a referir-me a todo aquele conforto cobiçado por muitos. Todo aquele luxo fictício do homem moderno .
Muitos trabalham e suam para um dia poderem estar sentados na cadeira mais confortável e terem um grupo de submissos a servirem-nos, para não terem de se mexer.
Para muitos, para a grande maioria, o luxo está no conforto.
Para mim, vale muito mais a pena estar ali, longe do acessível, do conforto, do luxo, dos computadores e do facilitismo.
Se ainda não viveram nada assim, não compreenderam, de certo, a felicidade que pode dar a alguém estar no meio do nada, sem praticamente nada, para chegar a um nada um pouco mais longe.
Um nada, como quem diz… nada para quem não está. Tudo para os que estão. É casual.
Mais tarde, e do nada, já se vê um abrigo.
Chegámos, por hoje.
Entrámos e reparei nas outras, poucas, pessoas que lá estavam. Fiquei contente por as ver. Alguém que também procurou o mesmo que eu.
Estavam ali para se recolherem do resto. Não quis incomodar.
Os sapatos ficavam no andar de baixo e os quartos colectivos eram no andar de cima. Da janela, notava-se bem que estávamos acima do nível das nuvens.
Quente. Calor. Era a primeira vez que sentir calor desde que sai do campo e comecei a subir.
Era impressionante como a única coisa de que precisávamos no momento, era uns dos outros. Não havia melhor jogo, melhor livro, melhor televisão, do que nós mesmos.
E à noite, quando me sentei na mesa para o jantar é que me lembrei dos que estariam, possivelmente, em casa.
Eu estava ali, não sei bem descrever onde, e a minha família, alguns dos meus amigos, continuavam a fazer as suas vidas normais.
Será que também se lembrariam de mim à hora do jantar? Será que também estavam a tentar imaginar como estaria a ser daquele lado?
Não sentia saudades, estava com demasiada fome para isso.
Mas gosto deles, reverencio-os. Noto-o quando me lembro.
Queria saber, naquele preciso momento, se estava tudo bem para os lados de lá, mas era impossível. Convencia-me de que sim. Também é bom lá estar, é certo.
7h00 da manhã. Acordávamos nós, no abrigo, e preparávamo-nos para começar a tomar o pequeno-almoço.
Em Portugal, quando temos a convicção de que algo é impossível, costumamos dizer “É tão provável como nevar em Agosto” (ou, pelo menos, parecido).
Pois, era pleno Agosto, e estava a nevar. Estávamos a comer na rua, porque não era permitido cozinhar dentro do abrigo.
Quando pousava a caneca de chá quente na mesa, esta congelava por completo.
Atirávamos bolinhas de gelo que fazíamos com a neve que caía.
Não podia deixar de achar piada ao panorama que estava a coabitar.
A casa de banho ao lado do abrigo, pequenina e construída em pedra, era no mínimo, bastante caricata.
Depois de acabarmos de comer, verificámos o material e preparámo-nos para começar a descida.
Apesar de ser mais rápido descer, para mim, era também um pouco mais perigoso. Escorregava-mos mais, tínhamos de ter mais cuidado. E ainda foram muitos os sustos que apanhamos com ‘fauna local’ que decidia atravessar-se à nossa afrente, sem meter os piscas ou buzinar.
O caminho era quase o mesmo, mas ao adverso.
Se antes partíamos da vegetação para a rocha, ora agora partíamos da rocha de novo à vegetação.
As dores de ontem, tinham desaparecido. Afinal, para baixo todos os anjos ajudam!
Descíamos mais repletos.
Os que subiram não eram as mesmas pessoas que desciam. Ou melhor, eram os mesmos, mas aperfeiçoados.
Uma hora depois de deixarmos a aventura para trás, chegávamos à vila Ferden onde almoçamos e apanhamos o autocarro até Goppenstein.
Na viagem de autocarro cheguei a comentar, com quem se encontrava ao meu lado direito, que achava, de certa forma, estranho que os habitantes encarassem tudo aquilo com uma enorme naturalidade.
Estranhava a forma como banalizavam as quedas de água que voltaram a aparecer, as grutas, as casinhas em madeira com frases escritas por cima da porta, as montanhas, a neve…
Mas compreendia. Também nós não damos o devido valor ao lugar onde vivemos.
Em Goppenstein, fomos de comboio até à vila de Kandersteg e depois a pé até ao acampamento.
Não se pode pedir melhor noite do que as passadas no bivaque.
Nunca tinha visto, nem nunca mais vi, um céu tão carregado de estrelas.
Mas lá, era assim todas as noites. Parada dez minutos a olhar para o céu, conseguia ver pelo menos umas quatro estrelas cadentes.
Acho que o céu era tão enfeitado que, por vezes, parecia que chegava para me iluminar.
Deitava-me no chão, com as mãos a segurar a cabeça e ficava a olhar para aquele deslumbramento.
Não conseguia, e ainda não consigo, fazer uma retrospectiva digna da aventura.
Quando mais damos, por regra, mais recebemos. E eu dei muito de mim, é um facto.
Mas ainda hoje, devo muito mais a Lotschenpass do que Lotschenpass a mim.
Devo-lhe um bocadinho do que serei para o resto da minha vida.
Devo-lhe a experiencia, a aprendizagem. Devo-lhe a oportunidade.
Devo-lhe incumbência.